O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará nos próximos dias a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, um tema que tem gerado intensos debates na sociedade. Tratam-se de 4 processos que questionam a validade da norma.
O que diz o texto?
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Parágrafos
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
O problema da moderação de conteúdo
Esse artigo tem sido questionado ultimamente na sociedade diante da insuficiência de moderação de conteúdo das grandes “plataformas” (embora eu considere esse termo inadequado, foi o que “pegou” no uso comum). É evidente que elas falham bastante em remover conteúdo criminoso postado em suas redes e desinformação. Uma das razões é que as áreas dessas empresas responsáveis pela moderação de conteúdo foram intensos alvos das demissões em massa realizadas desde o ano passado.
Assim, é perfeitamente válido o argumento de que é necessário regulamentar essas plataformas, dados os prejuízos que a ampla disseminação de desinformação e conteúdo criminoso tem causado à sociedade e à democracia.
A concepção do Marco Civil
O Marco Civil da Internet foi concebido como resultado de um processo amplamente participativo, ouvindo as vozes e os argumentos da sociedade de forma ampla, desde a fase de Anteprojeto de Lei. Foi usada uma plataforma aberta à participação de qualquer pessoa
Citação
O anteprojeto de lei to Marco Civil da Internet foi elaborado de forma inovadora, utilizando a plataforma CulturaDigital.Br do Ministério da Cultura. O uso de uma plataforma já existente facilitou os trabalhos da SAL e foi essencial para a criação do anteprojeto da forma como ele foi feito.
Fonte: Wikipédia
de uma forma tão inovadora e participativa que foi estudada em dissertação de mestrado. Os debates intensos também continuaram durante a tramitação do Projeto de Lei nas casas que compõem o Congresso Nacional.
Após ser sancionada, a Lei do Marco Civil da Internet se tornou um modelo para o mundo de regulamentação da internet, no qual outros países passaram a se inspirar como exemplo, ao discutir como elaborar a sua própria legislação.
O que aconteceria sem o art. 19?
Caso o STF decida anular o art. 19 do Marco Civil da Internet, qualquer um que mantenha um serviço na internet em que terceiros possam postar conteúdo poderia em tese ser responsabilizado civilmente por danos causados pelo conteúdo de terceiros. Isso se aplica tanto às grandes plataformas das Big Tech (ou, como são chamadas no podcast “Tech Won’t Save Us”, os vampiros de dados), quanto a pequenos fóruns como este.
No caso das Big Techs, elas teriam condições de arcar com o aumento de custos, recontratando e ampliando as equipes de moderação (chamadas “Trust and Safety”). Provavelmente configurariam seus algoritmos automatizados de moderação para serem mais restritivos, podendo ampliar algo que já ocorre, que é a remoção injustificada de conteúdos perfeitamente legais, o chamado falso positivo. Isso algo que não recebe muita atenção ultimamente, dado o impacto na sociedade dos falsos negativos (quando o conteúdo ilegal é mantido na plataforma mesmo após ser denunciado). Além disso, essas empresas têm grandes equipes de advogados muito bem pagos para cuidar de qualquer caso de conteúdo de terceiros que venha a litígio.
No fim das contas, no entanto, as Big Techs saem ganhando pois, apesar dos custos maiores, a inexistência de proteção legal contra conteúdo de terceiros é um ambiente legal que impede que qualquer concorrente apareça para tomar o seu lugar, consolidando o oligopólio de pouquíssimas gigantes atualmente existente e concentrando ainda mais o mercado.
Isso também é algo percebido em discussões em outros países. Na União Europeia, o Digital Services Act, aprovado em 2022, estabelece regras claramente distintas para as grande plataformas online (Large Online Platforms). Nos EUA, Mike Masnick argumentou em discussão semelhante sobre a possível revogação da Section 230 do Communications Decency Act que tem sido levantada pelo congresso:
Citação
“Big Tech” is absolutely willing to compromise on Section 230, because they know that all it does is play into their hands. It’s all the other sites that get screwed because of litigation and liability. Meta and Google and the other big tech companies have buildings full of lawyers. Removing Section 230 may harm them at the margins, but they’ll make up for it by having all the smaller competition wiped out.
Tradução: As “Big Tech” estão absolutamente dispostas a fazer concessões sobre a Seção 230, porque eles sabem que tudo o que isso faz é jogar a seu favor. São todos os outros sites que se ferram por causa de litígios e responsabilidade. A Meta e o Google e as outras grandes empresas de tecnologia têm prédios cheios de advogados. Remover a Seção 230 pode prejudicá-los nas margens, mas eles compensarão isso tendo toda a concorrência menor eliminada.
Fonte: Techdirt, maio de 2024
Por outro lado, no caso de pequenos sites e fóruns como este, é muito diferente. Muitas vezes, como é o nosso caso, não possuem nenhuma fonte de renda e representam apenas despesas, esforço e trabalho para a pessoa que o mantém. Às vezes acontece de ficarmos por dois dias ou mais sem ter condições de ler e acompanhar durante um tempo o que alguém escreva. A mera possibilidade de correr o risco de ter que arcar com um processo na justiça por causa de uma postagem de terceiros pode levar muitos a considerar o fechamento de suas atividades, considerando a insuficiência de recursos para vigiar rapidamente tudo o que é escrito por terceiros e para sustentar processos judiciais, bem como a natureza não comercial desses espaços.
Com isso, é fundamental que não se faça uma revogação por completo do artigo 19 do Marco Civil da Internet, e sim que se acrescentem disposições específicas para situações específicas aplicáveis somente às grandes plataformas. Além da regulamentação europeia já em vigor, algo parecido com isso também tem sido defendido aqui no Brasil por especialistas como Ronaldo Lemos, que arguiu durante uma audiência pública no STF em 2023:
Sobre o Artigo 19, minha visão pessoal é de que em vez de revogá-lo por
inconstitucionalidade, o melhor caminho é na verdade modular sua aplicação,
prevendo situações específicas diferentes da sua regra geral, de novo, por meio do Congresso Nacional.
Fonte: Vozes da Regulação - Audiência Pública em 28/3/2023
O futuro do fórum
Apesar dos desafios, é fundamental que se encontre uma solução equilibrada, que preserve a liberdade de expressão e a inovação na internet, ao mesmo tempo em que estabeleça regras claras e específicas para as grandes plataformas, de modo a mitigar os danos causados pela disseminação de conteúdo prejudicial, mas sem prejudicar os pequenos sites.
Caso o artigo 19 perca integralmente a sua validade, os riscos de qualquer pessoa manter um espaço na internet com a possibilidade de abrigar conteúdo de terceiros passará a ser enorme. Seria lamentável perder todo o conteúdo e base de conhecimento acumulados. Por isso, no caso de responsabilização por conteúdo de terceiros, a alternativa sensata e que preserva essa base de conteúdos poderia ser congelar o fórum e não permitir nenhuma nova postagem, deixado-o apenas como fonte de consulta, na esperança de auxiliar quem procura informações. Porém, lamentavelmente perdendo a sua característica interativa e a possibilidade de uma pessoa ajudar à outra diretamente.