Carta Brasileira para Cidades Inteligentes

Está em consulta pública até o dia 7 de novembro pelo Ministério do Desenvolvimento Regional a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. O documento visa articular as agendas do desenvolvimento urbano e das tecnologias, na elaboração de políticas públicas.

A versão do documento que foi colocada em consulta pública e o envio de contribuições pode ser realizado pelo endereço:

Seguem os trechos que mencionam a abertura de dados, seguidos dos meus comentários.

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Objetivo Estratégico 3: Estabelecer sistemas de governança de dados e de tecnologias, com transparência, segurança e privacidade

Contexto – Políticas públicas e conectividade são elementos básicos, mas insuficientes para equidade (distribuição justa, capaz de atender necessidades diferentes de todas as pessoas) de oportunidades no contexto da transformação digital. É preciso estruturar sistemas de governança de dados e de TICs (tecnologias de informação e comunicação) adequados a cada realidade. Somente a partir desses sistemas será possível integrar infraestrutura, sistemas, ferramentas e soluções digitais no desenvolvimento urbano de todas as cidades.Diferentes governos e setores da sociedade devem cooperar para os sistemas funcionarem de forma integrada, responsável e inovadora. Com segurança cibernética e garantia de privacidade pessoal. Devem cooperar para oferecer um ambiente de ética digital que assegure dados compartilhados e abertos sempre que possível e que garanta proteção jurídica às pessoas.

Comentários: esse termo “sempre que possível” ficou muito vago. É muito fácil aos gestores públicos usar uma ou mais das desculpas recorrentes (registrada no bingo dos dados abertos) e dizer que não é possível. Uma carta sobre cidades inteligentes deveria ser mais enfática em asseverar que a produção de dados por sensores, processos e sistemas da cidade inteligente sejam disponibilizados a todos como dados abertos, exceto casos que comprometam a segurança ou a privacidade das pessoas, sendo que essas exceções devem sempre ser justificadas.

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1.5.1.2 Sistema nacional de informações para o desenvolvimento urbano:Identificar, sistematizar e disponibilizar dados e informações públicas que sejam relevantes para o desenvolvimento urbano sustentável. Esses dados e informações devem ser elaborados para formular, implementar e monitorara Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU). Essas ações têm duas finalidades: (1) apoiar a implementação de iniciativas locais pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e órgãos interfederativos (que representam mais de um ente federado); e (2) atender ao Art. 16-A do Estatuto da Metrópole.

Comentários: disponibilizar dados para quem? Pela redação aqui, pode muito bem ser para um grupo restrito de stakeholders e não para a sociedade como um todo.

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2.5.2.Transparência nos dados de conectividade digital:Disponibilizar dados de conectividade digital (tais como banda larga, dispositivos móveis e internet por satélite) nas escalas intramunicipal (dentro dos limites municipais) e intraurbana (dentro da mancha urbana). Garantir que esses dados possam ser georreferenciados (ter a localização geográfica). Apresentar e disponibilizar os dados em linguagem inclusiva, de forma transparente e fácil de usar. Além disso, disponibilizar dados e estatísticas sobre acessos e atendimentos completos à população relacionados a serviços públicos digitais. Com essas atividades, será possível planejar ações de transformação digital na escala municipal.

Comentários: não ficou claro no que consistem esses dados de “conectividade digital”. São estatísticas de disponibilidade de infraestrutura de acesso à internet? Se sim, o georreferenciamento traz a preocupação de que se for preciso demais e as conexões forem individualmente reveladas, revelar informações pessoais. Deveria deixar claro o nível de agregação dos dados e a preocupação com a privacidade.

Já sobre os serviços digitais, deveriam abrir não somente as estatísticas de acesso e atendimentos realizados, como também a lista completa dos serviços disponíveis no município (carta de serviços digital), descritos de forma estruturada e legível por máquina.

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3.4. Interoperabilidade: Garantir a interoperabilidade (capacidade de sistemas trabalharem em conjunto para a troca eficaz de informações) ao implementar soluções de TICs (Tecnologias de Comunicação e Informação) em governos. Garantir a interoperabilidade também em iniciativas interinstitucionais, inclusive público-privadas. Em todos os casos, respeitar e usar normas, padrões e protocolos públicos oficiais (Programa de Interoperabilidade do Governo Eletrônico -e-PING).

Comentários: além disso, a interoperabilidade deveria se basear em padrões abertos e não proprietários e assegurar que as interfaces e modelos de dados sejam documentados e livres de barreiras legais, de modo a possibilitar e facilitar eventual troca de fornecedor em arranjos interinstitucionais como concessões e parcerias público-privadas.

3.5. Políticas de dados abertos: Implementar políticas de dados abertos em todos os níveis de governo. Usar experiências e recursos já disponíveis e em operação, tais como: Portal Brasileiro de Dados Abertos, Infraestrutura Nacional de Dados Abertos (INDA) e Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE). Usar as políticas de dados abertos para cumprir o princípio da transparência na administração pública e a Lei de Acesso à Informação (LAI).

3.5.1. Registros administrativos: Coletar, sistematizar, digitalizar, georreferenciar (inserir localização geográfica) e disponibilizar dados e informações gerados ao executar políticas públicas e ao prestar serviços públicos, em todos os níveis de governo. Os dados e informações devem ser disponibilizados em linguagem inclusiva. Todas as etapas devem cumprir as políticas de dados abertos e os padrões de interoperabilidade (capacidade de sistemas trabalharem em conjunto para a troca eficaz de informações) do nível de governo que as executa. Também devem respeitar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e a Lei de Acesso à Informação (LAI).

3.5.2. Dados geoespaciais: Fortalecer a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE)como plataforma que facilita o intercâmbio de dados geoespaciais (dados espaciais com localização geográfica). Estabelecer a Política Nacional de Geoinformação (PNGeo) e consolidar um vocabulário uniforme e específico em sistemas de informação geográfica urbana.

3.5.3. Padronização para elaboração de cadastros territoriais: Articular iniciativas governamentais que elaboram ou contribuem para elaborar cadastros imobiliários. Essa articulação deve ter como foco uniformizar conceitos, nomenclaturas, métodos e meios de implementação. Isso irá otimizar esforços e garantir a interoperabilidade (capacidade de sistemas trabalharem em conjunto para a troca eficaz de informações) de dados.

Comentários: excelentes referências. Entretanto, receio que limitar a abertura de dados a apenas a “dados e informações gerados ao executar políticas públicas e ao prestar serviços públicos” seja insuficiente. No contexto de cidades inteligentes, estamos falando muitas vezes do uso de sensores e outros dispotivos de IoT que coletam dados no espaço público urbano. Muitas vezes implementadas por meio de parcerias público-privadas (PPP). É preciso garantir que os dados gerados nesse contexto, respeitadas possíveis exceções quanto a dados pessoais, sejam também disponibilizados como dados abertos.

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3.7.2. Regulação da propriedade de dados: Definir com precisão os direitos sobre a propriedade e as condições para usar dados em contratos públicos e na atuação pública de caráter regulatório. O mesmo deve ocorrer em iniciativas interinstitucionais que impliquem na geração e no compartilhamento de dados, incluindo as iniciativas público-privadas. Priorizar a abertura e uso dos dados em políticas públicas. Em todos os casos mencionados, respeitar o princípio da função social da propriedade conforme consta do artigo constitucional sobre ordem econômica. (Art. 170 da Constituição Federal).

Comentários: embora seja dada no texto a prioridade para a abertura de dados e mencionada a função social da propriedade, ainda deixa margem para que a propriedade dos dados gerados fique com ente privado. Eu não consigo vislumbrar uma situação em que isso seja vantajoso para o interesse público.

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3.9. Plataformas públicas de compartilhamento de dados: Disponibilizar dados abertos e informações públicas em linguagem inclusiva, de forma organizada, compreensível e, sempre que possível, georreferenciados (com localização geográfica). As plataformas de visualização de dados e informações devem ser fáceis de usar por pessoas não-especialistas. Deste modo, as plataformas devem ser programadas em código aberto e com base em softwares livres. O objetivo é possibilitar o uso dos dados e das informações pelo ecossistema de inovação local, além de produzir conhecimento e soluções de interesse público.

Comentários: embora seja louvável a preocupação com a facilidade de uso das visualizações de dados por pessoas não especialistas, seguir essas orientações pode levar a uma proliferação de plataformas focadas apenas na visualização dos dados que de fato não disponibilizem dados abertos, isto é, estruturados e legíveis por máquina, prontos para o reúso. Isso se deve ao fato de que, embora hoje em dia esteja mais difundido, o conceito de dados abertos ainda não é conhecido por muitos e pode ser confundido com a mera disponibilidade da informação de forma visual (os conhecidos “painéis de dados”, tão populares nos últimos anos), sem ter como reaproveitá-los em outras análises, aplicações, sistemas, etc.

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5.4. Economia e mercado de dados: Implementar políticas, leis, regulamentos e outros instrumentos para estabelecer um mercado de dados ético e inclusivo. Devem ser considerados os efeitos sistêmicos desse mercado, assim como as características e as necessidades específicas de diferentes setores produtivos. O objetivo é aumentar a inovação, a competição, a transparência e a segurança jurídica na economia de dados.

Comentários: espero que aqui estejam se referindo aos aspectos econômicos do uso dos dados abertos. Deveria ter uma menção explícita. Se não são dados abertos, seria o quê? Por exemplo, dados bancários no conceito de open banking? Dados de pacientes tratados pelos planos de saúde? Data brokers que vendem cadastros de pessoas para marketing? Entendo que todo uso que não seja de dados abertos precisa ser estritamente regulado.

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6.7. Projetos de Concessão e Parcerias Público-Privadas: Desenvolver estudos de viabilidade para modelar novos negócios considerando as possibilidades de monetização de dados (uso de dados para benefícios econômicos).Considerar a inclusão de novas linhas para atender esse tipo de negócio no Fundo de Apoio à Estruturação de Concessão e Parcerias Público-Privadas (FEP).

Comentários: idem ao anterior.